Texto elaborado por Henrique Z.M. Parra, para a Revista Pimentalab – Abril 2021, V.1 – “É isso o futuro?” |
Há uma cena comum — registrada em milhares de fotos dos acompanhantes das pessoas vacinadas contra o vírus Sars-CoV-2 — que é reveladora do esfacelamento do social. Diante das inúmeras incertezas que cercam o momento especial de receber a dose de uma vacina, que se tornou uma espécie de bilhete-salva-vidas no meio do naufrágio coletivo em que fomos empurrados por uma política de morte, os trabalhadores da saúde performam diante dos usuários e de seus acompanhantes um ritual pra tentar fabricar a confiança de que cada seringa será realmente preenchida pelo líquido mágico de um frasco verdadeiro, que será em seguida efetivamente esvaziada no braço do paciente. Muitas vezes, enfermeiras e enfermeiros pedem para que as pessoas observem, verifiquem e registrem o momento de retirada e preparação da seringa.
É preciso estar atento, a sociedade desabou! Que situação é essa que adentramos que faz de um ato tão banal, como tomar uma vacina, um frágil momento de erosão do real? A dúvida que paira sobre o momento de recepção da vacina é mais uma dobra sobre a crise das inúmeras instituições que sustentam e organizam a vida contemporânea e também reveleradora da profunda consciência sobre os modos de operação consorciada entre o legal e o ilegal, que atravessam a vida no Brasil. A tal crise de credibilidade das instituições é acrescida de outras experiências consolidadas na vida prática e agora potencializadas no curtocircuito informativo da nova ecologia tecnoestética comunicativa. Isso que chamamos de “sociedade” é o resultado de uma fabricação contínua, sustentada e atualizada permanentemente em todas as interações humanas. As instituições, em suas diversas expressões, são as formas coletivas que inventamos para dar maior durabilidade a determinadas formas de organização da vida. Mas a vida no seu fluxo só acontece porque atuamos sobre um campo tácito de suposições que governam nossas ações e interações. Um dos elementos fundamentais na sustentação dos vínculos sociais, e portanto do fluxo da vida, é a confiança.
A confiança de que posso agir, conversar, fazer um gesto porque suponho que minha ação receberá uma determinada “resposta” do mundo com o qual interajo é fundamental na produção da vida cotidiana. Quando a confiança que sustenta o funcionamento desse mundo tácito se quebra, nos deparamos com uma situação de profunda insegurança e desorientação. É nesse contexto de ruptura de sentidos que proliferam as estratégias de mobilização que buscam oferecer territórios ágeis e estáveis de organização imediata da experiência vivida. A pandemia covid19 no Brasil, neste sentido, aproxima-se de outros acontecimentos históricos que tensionam e muitas vezes destroem o mundo comum de sentidos compartilhados. Evidentemente, essa situação não é homogênea. Em algumas comunidades, através de inúmeras ações distribuídas de solidariedade, a confiança cultivada é expressão de um Comum coletivamente produzido, infraestruturado e cuidado. Se tomamos aquela cena da vacina como metáfora das transformações em curso sobre os modos de subjetivação e sobre as formas de organização da vida social, talvez possamos imaginar melhor os novos dispositivos de poder que estão sendo produzidos e desejados para o ordenamento da vida contemporânea. Num mundo onde a confiança foi destruída ou extraída e codificada (sistemas de reputação algorítmica), recorre-se rapidamente a mecanismos (práticas sociais e tecnológicas) que forneçam algum tipo de certeza para organizar a fluidez de nossas ações. Em se tratando de uma crise sanitária onde o risco de vida, o medo do contágio e morte tornam-se uma experiência compartilhada, encontrar formas de orientação dos sentidos e de redução da insegurança tornam-se uma necessidade radical.
É neste cenário, inclusive, que tanto o Estado como as corporações privadas oferecem rapidamente tecnologias de governo e controle sobre a vida, seja para fortalecer o exercício do poder ou para a exploração e extração de valor sobre a vida. Velhos dispositivos são atualizados e novas tecnologias são testadas e desenvolvidas.
Neste contexto, uma palavra entrou de vez para nosso cotidiano: “protocolo”. Nunca ouvi tanto essa palavra na minha vida. Diante da crise de confiança (não sabemos ao certo o que esperar em determinado contexto, não sabemos ao certo como devemos proceder diante de tal situação…), recorre-se a protocolos como dispositivos de ordenamento da vida social. Na pandemia a palavra protocolo transbordou rapidamente do ambiente biomédico, sanitário e governamental, para nossa vida cotidiana. Um primeiro sentido que vou apontar aqui para a noção de protocolo é a de uma convenção, um procedimento de interpretação estabelecido diante de uma situação (um conjunto de disposições), que descreve e prescreve uma ação: lavar as mãos ao chegar em casa; permanecer 14 dias em quarentena se tiver contato com alguém que teve sintomas de covid19; dar uma nota de avaliação no sistema de entrega do produto recebido; validar a entrada de estudantes na sala de aula virtual… Os protocolos neste momento são invocados como uma técnica, modos práticos de agir que foram concebidos e definidos alhures. Ao executarmos um protocolo buscamos uma forma de resposta rápida e organizada para uma situação encontrada. Em situações onde devemos tomar decisões com certa agilidade, os protocolos muitas vezes oferecem soluções prontas (aprendidas e codificadas socialmente) que nos poupam muita energia individual e coletiva. Os protocolos resultam portanto da produção coletiva de conhecimentos e experiências.
Os protocolos também podem ser pensados como técnicas de redução da insegurança que oferecem algum terreno estável de decisão para situações específicas. Evidentemente, a leitura dos “sinais” do que efetivamente importa é sempre objeto de uma complicada política do sensível. O regime de produção e validação do que são as evidências é fruto de longo percurso e conflitos epistemopolíticos. Como funciona um dispositivo protocolar? Ele opera como um sistema de interpretação sobre um conjunto selecionado de informações/sinais que in-forma uma situação, e prescreve uma ação diante dessa interpretação. Os protocolos oferecem, portanto, uma economia decisional, uma redução de incerteza e também formas de autorização e legitimação para determinadas condutas. Em algumas práticas os protocolos funcionam como tecnologias de delegação do poder decisório e da responsabilidade sobre possíveis efeitos das ações que ocorrem através de um protocolo. Nesse sentido, o desenho e sua aplicação, faz dos protocolos tecnologias políticas, uma vez que eles atualizam o resultado de uma distribuição de poder materializada no desenho do protocolo.
Num cenário onde a confiança foi erodida, recorremos a distintos protocolos para tentar produzir algum tipo de segurança em nossas interações. Como fazemos para encontrar alguém durante a pandemia? Quais são as perguntas que fazemos? Sempre há, evidentemente, uma negociação, um jogo interpretativo em torno dos protocolos sociais. Com a Pandemia a experiência cultural protocolar acabou por transbordar para diversos domínios da vida social. Há uma reverberação entre a lógica protocolar biopolítica com outros processos socioculturais onde a racionalidade protocolar também é aplicada. Adotamos protocolos para encontrar colegas, para organizar as novas interações online, definimos protocolos para as relações no trabalho, para a avaliação dos estudantes, para os encontros sexuais, para as tarefas de manutenção da casa… A cultura protocolar também se alimenta de uma profunda mutação subjetiva, descrita por Franco Berardi Bifo, como a passagem de um modo de relação onde a lógica conectiva domina e enfraquece a lógica conjuntiva. Enquanto na conjunção a interação é marcada pela indeterminação e ambiguidade dos sentidos comunicacionais, exigindo-nos sempre uma disposição à abertura negociada do risco interpretativo, na lógica conectiva impera a redução interpretativa, não há espaço para a incerteza. Se o encontro erótico é próprio da lógica conjuntiva, as disposições de controle e a expectativa de eliminação das incertezas e própria da lógica conectiva. Nesse sentido, a mutação descrita por Bifo, como uma nova sensibilidade e um novo regime de subjetivação das sociedades cibermediadas, é mais um elemento a compor essa experiência protocolar. Todavia, a novidade (que já não é tão nova assim), é o fato de que agora as formas de produção e validação de muitos dos protocolos que adotamos na vida cotidiana são executados através de uma mediação digital.
Como as tecnologias de informação e comunicação digital em redes cibernéticas tem uma presença cada vez mais ubíqua em nossas vidas ampliam-se as bases materiais que infraestruturam a cultura protocolar. Temos agora a combinação de um protocolo social (semântico e contextual) a um protocolo digital (a-semântico e abstrato). Tal fusão implica num reordenamento dos processos interpretativos e da performatividade tecnomediada, que agora torna-se também algorítmica.
Retomo aqui algumas proposições do livro Protocol: how control exist after decentralization, de Alexander Galloway (2004) – exploramos esse livro na primeira década dos anos 2000, mas com a Pandemia Covid19 este texto ganhou outra dimensão. A partir da investigação dos protocolos da internet, Galloway desenvolve um interessante argumento que busca descrever o dispositivo protocolar como a tecnologia de poder das sociedades de controle (no sentido elaborado por Deleuze). Para Galloway o dispositivo protocolar está para a biopolítica e as sociedade de controle, assim como o dispositivo panóptico foucaultiano está para as sociedades disciplinares. São dispositivos de saber-poder (lógicos, discursivos, epistêmicos) e tecnologias materiais de exercício do poder. Ampliando os sentidos da noção de protocolo para o terreno dos cientistas da computação, Galloway indica algumas definições interessantes: regras convencionais que governam um conjunto de comportamentos possíveis, dentro de um sistema heterogêneo; técnica para alcançar regulação voluntária dentro de um ambiente contingente. Interessa aqui a maneira como o protocolo, diferentemente das tecnologias de poder anteriores, visa controlar/governar as ações futuras mediante o desenho do ambiente onde a ação se desenvolve. Ao mesmo tempo em que ele oferece um sistema de controle distribuído (executado pelos próprios atores-actantes que adotam um protocolo) ele delega aos arquitetos do protocolo um poder vertical. Sua adoção é indeterminada, mas as ações possíveis através do protocolo estão previamente moduladas. O poder protocolar, portanto, funciona para o governo do virtual (dos possíveis), para o governo do futuro. É uma tecnologia de poder “adequada” a este momento, onde o que está em jogo é a capacidade de produzir e gerir futuros possíveis. A força e a ameaça maior do dispositivo protocolar é que ele vai se tornando um horizonte cultural, uma racionalidade com normatividade e valores inscritos de forma imanente (eficiência, transparência, velocidade, certeza, controle…). Toda vez que introduzimos em nossas atividades cotidianas um protocolo que será aplicado/executado através de uma mediação digital, estamos delegando a interpretação de processos relacionais e comunicacionais a uma mediação algorítmica. Compreender os processos de delegação maquínica que promovemos na adoção de qualquer protocolo digital é muito importante. Não apenas a função que ele coloca em movimento, mas também o que é que ele desmonta. Que relações ele fortalece, que práticas sociais e que valores ele promove, mas também que práticas, que comunidades, que economias e quais infraestruturas ele torna obsoletas?