A pós-automação e além dela: tem saída?

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por Felipe Moda

  1. A Pós-automação

Este texto tem como objetivo fazer um diálogo crítico com a teoria da pós-automação, desenvolvida por Smith e Fressoli (2021), colocando ênfase, especialmente, na relação entre a tecnologia e a construção de imaginários que rompam com o determinismo sócio-técnico sobre as relações sociais. Nestes termos, buscaremos desenvolver, ainda que rapidamente, uma concepção de como ocorre o desenvolvimento tecnológico dentro do modo de produção capitalista, relacionando-o com a intensificação do controle e dos ritmos produtivos, além de mapearmos ações que buscam romper com este desenvolvimento.

Segundo Smith e Fressoli (2021, p. 2), a pós-automação seria uma subversão do uso das tecnologias projetadas para a automação, dando a elas diferentes usos, valores e propósitos tendo em vista a construção de futuros mais democráticos e abertos. Assim, enquanto a automação busca aprofundar a acumulação da capital através do aumento da produtividade e do controle sobre o trabalho, a pós-automação se apropria das tecnologias da automação e modifica seus usos, hackeando-as e ressignificando suas possibilidades.

Esta apropriação é realizada principalmente por setores populacionais que ficam à margem do “progresso” capitalista, tais como os que perdem seus empregos pelo crescente uso da tecnologia, os que têm sua condição de trabalho precarizada e os vinculados à área da Tecnologia da Informação e que tem suas atividades simplificadas e parceladas, não encontrando assim satisfação em seus empregos. Segundo a teoria da pós-automação, estes três grupos de afetados são sensíveis à construção de novos espaços produtivos pautados pela produção comum entre pares, pelo cooperativismo de plataforma, pelo direito a reparar decorrente da crítica à obsolescência programada e pelo desenvolvimento de tecnologias pensadas para o cuidado e para a autonomia digital de povos e comunidades tradicionais. É a partir destas diferentes construções que a pós-automação é concebida, subvertendo a automação.

  1. Capitalismo, desenvolvimento tecnológico e a automação

Para analisarmos a teoria da pós-automação faz-se necessário aprofundarmos a leitura sobre qual tecnologia é produzida dentro do modo de produção capitalista. Segundo Braverman (1987, p. 146), neste modo de produção as inovações tecnológicas não ocorrem de forma espontânea, mas são fruto de um progresso técnico planejado. Assim, “a maquinaria entra no mundo não como serva da humanidade, mas como instrumento daqueles a quem a acumulação de capital proporciona a propriedade das máquinas” (Braverman, 1987, p. 167). Nesta perspectiva, um novo método de produção não precisa ser tecnologicamente superior ao anterior para ser adotado, mas possibilitar o aumento da produtividade do trabalho (Marglin, 2001, p. 44). Desta forma, o desenvolvimento das forças produtivas não decorre de escolhas meramente técnicas, mas é determinado pelas relações de produção dominantes e pela luta de classes a qual condiciona esta dominação (Magaline, 1977, p. 55).

A perspectiva aqui assumida dialoga com a formulação expressa por Smith e Fressoli ao analisar os processos e as tecnologias adotadas pela Quarta Revolução Industrial. Segundo os autores, a mais recente onda de automações, que tem como parte de suas facetas o capitalismo de plataforma (Srnicek, 2017) e a Indústria 4.0, foram medidas projetadas para aumentar a eficiência e a produtividade laboral e o controle gerencial. Ou seja, as escolhas sobre quais tecnologias foram concebidas mais uma vez não são projetadas a partir do interesse pelo bem comum da humanidade, mas pela capacidade de possibilitar o aumento da acumulação de capital.

São inúmeras as consequências sociais da Quarta Revolução Industrial. Dentre elas destacamos a capacidade das empresas em gerenciar de maneira mais minuciosa as atividades de milhares de trabalhadores dispersos em diferentes países (Woodcock, 2020), a exacerbação da divisão internacional do trabalho devido ao fato dos trabalhos digitais mais precários serem efetuados no Sul Global, além de conformar uma super oferta mundial da força de trabalho, que tem como consequência a piora nas condições de trabalho (Graham; Anwar, 2020) e a centralização do capital, promovendo a quebra de comércios e mercados locais (Madureira, 2020). Assim, quando pensamos como subverter o uso das tecnologias, temos que refletir que estamos atuando com este pano de fundo.

  1. Fugir do determinismo e da neutralidade

Ponto positivo da teoria da pós-automação diz respeito à crítica ao determinismo tecnológico sobre as relações sociais. Nestes termos, as tecnologias desenvolvidas não possuem apenas um modo de uso e não produzem necessariamente futuros pré-estabelecidos pelos seus desenvolvedores. Ou seja, o futuro não é essencializado pela automação e ao serem constituídos novos usos e valores aos artefatos tecnológicos, diferentes relações sociais podem ser engendradas.

Entretanto, em que pese a existência de diferentes possibilidades de usos de uma mesma tecnologia, a maneira pela qual ela é projetada é que delimita esta gama de possibilidades. Assim, se o determinismo tecnológico deve ser criticado, a neutralidade da tecnologia também. Neste sentido, consideramos que parte da problemática envolta ao uso das tecnologias, em especial as concebidas para aumentar o ritmo e o controle produtivo, não diz respeito apenas ao uso que é feito delas, o que poderia ser superado a partir da sua subversão, mas se relacionam à própria maneira pela qual as tecnologias são pensadas. Exemplificando, não entendemos os impactos sociais da plataformização do trabalho sobre as condições de trabalho e os mercados locais dizem respeito apenas ao uso que é feito das plataformas, o que poderia ser corrigido ao utilizarmos estas plataformas em um modelo cooperativo, mas compreendemos que esta forma de organização do trabalho foi pensada justamente para promover estes impactos. Os problemas não são apenas um acidente de percurso.

Uma maneira histórica de ilustrar este comentário pode ser encontrada no desenvolvimento do taylorismo na União Soviética. Os bolcheviques defendiam que seria possível a construção de uma nova sociedade, incluindo uma nova subjetividade dos trabalhadores, subvertendo o uso do “gerenciamento científico” do trabalho (Taylor, 1990), o qual tem por seu fundamento uma estrita divisão entre a concepção e a execução das atividades para aumentar a produtividade. Diversas análises já foram realizadas demonstrando como a aplicação desta divisão do trabalho, algo necessário no taylorismo, facilitou a burocratização do aparelho de Estado Soviético, pois dentro do próprio processo produtivo foi consolidada uma pequena camada de trabalhadores que detinham o poder de determinar como as atividades deveriam ocorrer. Deste modo, os efeitos sociais do taylorismo não foram superados ao dar a esta prática gerencial um novo uso.

Nestes termos, a principal crítica por nós pontuada sobre a teoria da pós-automação diz respeito ao que poderia ser chamada a “adaptabilidade à automação”, a qual coloca como o centro para pensar futuros mais abertos e democráticos a subversão do uso das tecnologias pensadas para terem consequências opostas a estes. Darmos usos diferentes ao que foi projetado para aumentar o controle não implica em sempre nos adaptarmos a estas tecnologias, limitando o nosso imaginário utópico?

  1. Pensar novos futuros

A pós-automação é uma possibilidade para pensarmos novos futuros, porém devemos pensar com e além dela. Hackear as tecnologias nos abre apenas algumas das possibilidades atualmente postas para engendrar novas relações sociais, possibilidades limitadas pelas próprias tecnologias. Esta abertura para a construção de novas relações são bastante importantes, mas não devemos ignorar outras ações e sujeitos em nossas análises se queremos diferentes futuros.

Desse modo, não devemos colocar luz apenas nas ações que estão sendo desenvolvidas pelos que ficam à margem da Quarta Revolução Industrial quando pensamos sociedades mais abertas e democráticas, mas incluir também o que foi destruído pela automação e os que estão submetidos a ela, pensando as saídas a partir destas intersecções. Ou seja, propomos que quando definimos os agentes centrais para a construção de novas relações sociais, devemos, por exemplo, incluir neles os trabalhadores hoje vinculados às plataformas digitais e que lutam em diferentes países do mundo por melhores condições de trabalho e os pequenos produtores que resistem aos processos de centralização do capital, além de incluir os setores populacionais abarcados pela pós-automação.

Realizar este movimento, considerando todas as oportunidades que podem ser criadas a partir das diferenças existentes, nos permite inclusive aumentar a escalabilidade das nossas propostas, criando situações que possam embarcar mais pessoas e territórios. Em uma sociedade em que a desigualdade social é crescente, inclusive aumentando o abismo que separa o Norte e o Sul global, é fundamental considerarmos o que é realizado pelos esmagados pelo progresso tecnológico para mudarmos o presente e o futuro.

Referências Bibliográficas

BRAVERMAN. H.. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no século XX.Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.

GRAHAM, M.; ANWAR, A.. WOODCOCK, J.. Trabalho Digital. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.

MADUREIRA, D.. Como apps de entrega estão levando pequenos comércios à falência. BBC, 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-51272233>. Acesso em: 06 mai. 2021.

MAGALINE, A. D.. Luta de classes e desvalorização do capital. Lisboa: Moraes, 1977.

MARGLIN, S.. Origem e funções do parcelamento de tarefas: para que servem os patrões?. In: GORZ, A. (Org.) Crítica da divisão do trabalho. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

SMITH & FRESOLI. Post-Automation (artigo no prelo). 2021.

SRNICEK, N.. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017.

TAYLOR, F. Princípios da administração científica. São Paulo: Editora Atlas S.A., 1990.

WOODCOCK, J.. O panóptico algorítmico da Deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.