O ocaso de Alison Ugus é mais um fio à rede de nossa milenar resistência

Ensaio de Silvana Leodoro

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigilância atenta vigia,
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças
. i

Eram pouco mais de vinte e duas horas do dia 12 de maio, último, uma quarta-feira, quando Alison Ugusii caminhava pelas ruas da cidade de Popayán, capital do departamento de Cauca, na Colômbia. Em sua cidade, assim como em várias outras do país, vinham ocorrendo, desde o dia 28 de abril, protestos populares originados pelo agravamento da crise econômica no país e em resposta ao plano de reforma tributária proposto (e, depois retirado) pelo governo conservador do presidente Iván Duque. Os protestos, ainda em curso, são chamados de Greve Nacional.

A jovem colombiana, de dezessete anos, vestia um agasalho que lhe cobria a cabeça, máscara clara no rosto [própria dos tempos pandêmicos], mochila nas costas e dirigia-se à casa de um amigo quando foi imobilizada e detida por vários policiaisiii paramentados de escudos, capacetes, coturnos, coletes à prova de balas, uniformes escuros e motocicletas. Eles eram do temível Esquadrão Móvel Antidistúrbios, a ESMADA, e “conduziram” Alison Ugus a uma Unidade de Reação Imediata (URI).

Toda ação foi registrada bem de perto por um jornalistaiv [provavelmente pela câmera de um aparelho de telefone celular] que perguntou à jovem o seu nome “para os Direitos Humanos” e se desejava que algum familiar fosse avisado. Diante do silêncio de Alison, que resistia desesperadamente à incursão dos policiais, o jornalista perguntou a um deles o motivo da detenção, mas também não obteve resposta. Ao fundo, ouvia-se os gritos da jovem: “Quatro com uma mulher, quatro homens com uma mulher! Idiotas!

Alguns populares acompanhavam a cena, mas sem se aproximar ou interferir. No entanto, postaram-se à entrada da URI quando a jovem desapareceu em seu interior e a grade foi fechada. Ofegante, o jornalista relatou que a jovem parecia estar “aparentemente ilesa” diante da captura, pois não havia indicações de asfixia, mas que os “Diretos Humanos deveriam fazer o acompanhamento”.

No dia seguinte, Alison Ugus publicou uma mensagem em sua páginav da rede social Facebook e também o vídeo, de mais de quarenta minutos, que continha as cenas de sua captura.

Les tocó coger me entre 4 no Hijueputas?? Yo soy a la que cogieron, en ningún momento me ven tirando piedras, no iba con ellos, me dirigía hacia la casa de un amigo que me dejaría quedar en su casa, cuando menos pensé estaban encima, ni siquiera corrí porque era peor, lo único que hice fue esconderme detrás de un muro, y solo porque estaba grabando me cogieron, en medio de eso me bajaron el pantalón y me manosearon hasta el alma, en el video queda claro que yo les digo que me suelten porque me estaban “desnuando” quitando el pantalón.

Pero casi les da un mal cuando me revisaron los documentos y se dieron cuenta que soy hija de un policía, apoyo totalmente el paro y las manifestaciones, pero ayer NO ESTABA CON LOS DE LAS MARCHAS.

Naquele mesmo dia, Alison Ugus suicidou-se.

Ainda na quinta-feira, dia treze, o senador da oposição Wilson Arias, divulgou em seu perfil, na rede social Twitter, o trecho do vídeo que apresentava a detençãovi de Alison Ugus e a notícia de sua morte. Outras fontes repercutiram a notícia e o coletivo feminista Casa de la Mujer cobrou uma ação efetiva do Ministério Público e do Presidente Iván Duque. Outras organizações denunciaram a ocorrência de outros 16 casos de violência sexual envolvendo as forças policiais durante a Greve Nacional.

Diante da repercussão negativa do caso, no mesmo dia, o general comandante da polícia regional, de Popayán, Ricardo Augusto Alarcón Campos, descreveu a notícia como “falsa, vil e mesquinha” [pelo perfil no Twitter @PoliciaPopayan e replicada em outras fontes como Diario del Norte], afirmando que a menor nunca havia adentrado em uma instalação da polícia e se, caso tivesse ocorrido tal fato, seria acionado o protocolo de proteção à sua integridade, em função de sua minoridade. Segundo ele, a jovem teria sido entregue à sua família, em perfeitas condições, após uma permanência de minutos na URI de Popayán.

Mesmo com o afastamento de quatro policiais, supostamente envolvidos na violência física e sexual cometida contra a jovem, ocorreram novas manifestações de populares na sexta-feira, dia 14, com a destruição e incêndio do prédio da IRU e novos confrontos com as forças policiais que resultaram em feridos, uma pessoa morta e decretação de toque de recolher pela autoridade municipal local.

Ao mesmo tempo, organizações feministas convocaram uma coletiva de imprensa para denunciar os diversos casos de violência contras as mulheres, durante a Greve Nacional, sendo a convocatória reproduzida [retuitadavii] no perfil do senador Wilson Arias, no Twitter, e em outros perfis e canais de comunicação. Foi, inclusive, através de um desses perfis [@sudestada, no Instagram] que tive acesso, do Brasil, à história de Alison Ugus, mas não vi – até o presente momento – repercussão do caso em perfis, páginas, canais e veículos nacionais dentro e fora das redes sociais.

Me manosearam hasta el alma”

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retém e expulsam a vida donde
Ainás, Nzingas, Ngambeles
E outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A violação do corpo, da integridade, da força vital de Alison Ugus nos remete às diversas formas de violência contra as mulheres [sexual, simbólica, física, psicológica, obstétrica, patrimonial, digital] e diz respeito à violência dos sistemas policiais, à objetificação dos corpos femininos [especialmente, mas também de outros corpos dissidentes], aos fascismos contemporâneos disfarçados em democracias liberais e aos milenares discursos normativo-religiosos que confinaram as mulheres a um lugar de obediência, passividade, inferioridade em relação aos homens que, oportuna e simbioticamente, o sistema patriarcal colonialista imbricou entre nós, latino-americanos.

Segundo Jean Delumeau, na Idade Média a mulher foi identificada como um perigoso agente de satã, tanto por homens da igreja quanto por juízes leigos, e a relação masculina com o “segundo sexo” (2009, p. 462) oscilou entre a atração e a repulsa. “Essa veneração do homem pela mulher foi contrabalançada ao longo das eras pelo medo que ele sentiu do outro sexo, particularmente nas sociedades de estruturas patriarcais” (p. 463).

A mulher, “mãe do pecado” (p. 482), “adivinha ímpia” (483, adaptado), “flagelo da língua” (p. 463), predestinada ao mal – mesmo após as reformas religiosas – deveria [deve e deverá] ser confinada aos recônditos do lar e ocupada das tarefas privadas, bem distantes dos processos decisórios da vida pública, destinados somente aos homens [brancos]. A pregação de São Bernardo de Siena, no século XIV, revela esse lugar e função

É preciso varrer a casa? – Sim. – Sim. Faze-a varrê-la. É preciso lavar de novo as tigelas? Faze-a lavá-las. É preciso peneirar? Faze-a peneirar, faze-a então peneirar. É preciso lavar a roupa? Faze-a lavá-la em casa. – Mas há a criada! – Que haja a criada. Deixe fazer ela [a esposa], não por necessidade de que seja ela que o faça, mas para dar-lhe exercício. Faze-a vigiar as crianças, lavar os cueiros e tudo. Se tu não a habituas a fazer tudo, ela se tornará um bom pedacinho de carne. Não lhe deixes comodidades, eu te digo. Enquanto a mantiveres atenta, ela não permanecerá à janela, e não lhe passará pela cabeça ora uma coisa, ora outra. (MONNIER, Philippe. Le Quattrocento, v. 2, Paris: Perrin et Cie, 1924, p. 198 apud DELUMEAU, 2009, p. 477)

Portanto, o domínio e regozijo do homem [branco] erigiu-se em função de uma suposta superioridade que, para operar, necessitou da diabolização da mulher [em sua dimensão corpórea e intelectual] para que dela pudesse dispor para seu deleite, castigo ou purificação

Assim, a Idade Média “cristã”, em uma medida bastante ampla, somou, racionalizou e aumentou as queixas misóginas recebidas das tradições de que era herdeira. Além disso, a cultura encontrava-se agora, em vastíssima medida, nas mãos de clérigos celibatários que não podiam exaltar senão a virgindade e enfurecer-se contra a tentadora de quem temiam as seduções. (DELAMEAU, 2009, p. 473)

No colonialidade brasileira, o patriarcado-colonial-ibérico operou o adestramento das mulheres, e de sua sexualidade, estabelecendo o domínio do pai, dos irmãos, do marido e confinando-a ao espaço privado. Analisando documentos sobre a educação feminina em situação de clausura [recolhimento], elaborados pelo bispo Azeredo Coutinho e publicados em 1798, em Pernambuco, Emanuel Araújo afirma que

O programa de estudos destinado às meninas era bem diferente do dirigido aos meninos, e mesmo nas matérias comuns, ministradas separadamente, o aprendizado delas limitava-se ao mínimo, de forma ligeira, leve. Só as que mais tarde seriam destinadas ao convento aprendiam latim e música; as demais restringiam-se ao que interessava ao funcionamento do futuro lar: ler, escrever, contar, coser e bordar; além disso, no máximo, que “a mestra lhes refira alguns passos da história instrutivos e de edificação, e as faça entoar algumas cantigas inocentes, para as ter sempre alegres e divertidas” (ARAÚJO, 2018, p. 50)

A lógica da mulher recatada e do lar, que não deve ter outro objetivo senão o casamento, a procriação, os cuidados da casa, da família e das reputações, ecoou ao longo do processo de formação da sociedade brasileira e de sua tardia industrialização, em meados do século XIX e início do século XX e, embora as mulheres formassem um grande contingente de trabalhadoras na indústria de fiação e tecelagemviiinão se deve supor que elas foram progressivamente substituindo os homens e conquistando o mercado de trabalho fabril” (RAGO, 2018, p. 581), mas foram substituídas pela mão de obra masculina à medida que a industrialização avançava. “Da variação salarial à intimidação física, da desqualificação intelectual ao assédio sexual, elas tiveram sempre de lutar contra inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens – como naturalmente masculino” (p. 581-582).

O assédio sexual é uma forma de violência de natureza simbólica e psicológica que também se exerce em forma de violência física. Portanto, tal violência cuja natureza é capaz de mobilizar tantos recursos só se dá porque é institucionalizada, ou seja, o abusador, o assediador, o violentador conta com redes de ocultamento e relativização de seus atos e concretas possibilidades de aviltamento e constrangimento de suas vítimas. É uma forma vil, cruel e covarde de exercer poder, sendo que as demais violências de natureza sexual são tão mais perversas ainda nas gradações que uma escala de violações possa alcançar.

O que Alison Ugus relatou, antes de sua morte, vai mundo além do assédio sexual e se deu em um contexto de violações de outros direitos [de expressão, de manifestação, de reunião, de ir e vir, por exemplo], além do fato de estar só diante de homens armados e tutelados pelo uso da força do Estado. É inalcançável a dimensão de seu terror e ainda assim ela os afrontou!

Hackefeminismo e a Ética do Cuidado

Quatro com uma mulher,
quatro homens com uma mulher!
Idiotas!

Segundo Graciela Natansohn e Josemira Reis, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), sobre assassinatos de mulheres no Brasil, indicaram um aumento do número de assassinatos de mulheres negras de 29,9%, entre 2007 e 2017, portanto, após a promulgação da Lei 11.340/06, chamada Lei Maria da Penha, que tipificou o crime de feminicídio no Brasil. O ano de 2017, inclusive, apresentou o maior índice de assassinatos de mulheres (4.936), no período de dez anos, sendo 66% dessas vítimas mulheres negras.

Dados também permitem ver como mulheres negras e trans ocupam situações de maior vulnerabilidade quando o tema é violência: feminicídio, violência doméstica, obstétrica e a mortalidade materna atingem principalmente este segmento. Para além de todas as problemáticas aqui elencadas, essas mulheres são, também, as que mais lidam com ataques online. (NATANSOHN e REIS, 2020, p. 7)

Tais dados reforçam como nossos regimes de perpetuação da misoginia são ampliados por uma teia de interseccionalidades. Interseccionalidade é tanto um conceito quanto um recurso metodológico desenvolvido pela professora norte-americana Kimberlé Crenshaw, em 1989, no qual ela propõe a análise das desigualdades sociais pela perspectivação das dinâmicas sociais nas quais dois ou mais eixos de subordinação se interseccionam, por exemplo, ser mulher, ser afro-americana e ser pobre são elementos constituintes de uma identidade interseccionada.

Os eixos de subordinação, que constituem a interseccionalidade, se expressam em diferentes marcadores sociais e culturais (classe, gênero, raça, etnia, territorialidade, credo etc.) que – ao se interseccionarem – amplificam as opressões e desigualdades que fluem através deles. Carla Akotirene, autora do livro “Interseccionalidades”, afirma que “A interseccionalidade é um recurso metodológico contra o apagamento epistemológico da mulher negra” (AKOTIRENE, 2020, informação verbal).

Seja na concretude da vida cotidiana ou na virtualidade da internet e das redes sociais [que não prescinde de materialidades para existir], observa-se a reprodução das violências de gênero, somadas agora às “violências digitais” (p. 3) contra as mulheres e os grupos dissidentes, ou seja, aqueles que divergem da heteronormatividade binária baseada em dois sexos e que não conhece [ou diaboliza] a composição sócio-histórica dos gêneros.

Durante a pandemia de Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e ainda em curso na elaboração desse texto, a comunidade acadêmica passou a promover seus eventos através de dispositivos digitais de comunicação utilizando-se de plataformas como o Google Meet e o Zoom. Nesses eventos, vários casos de intromissões e ataques racistas, misóginos, homofóbicos, fascistas, nazistas e de outras ordens de preconceitos foram relatados aqui e no exterior. Um deles, por exemplo, aconteceu em uma mesa que discutia a “Filosofia Africana e o Racismo Estrutural”, na Universidade de Campinas (UniCamp), e contava com a presença da filósofa Katiúscia Ribeiro. Veja a seguir a nota de repúdio que ela publicou em seu perfil no Instagram.

Natansohn e Reis são pesquisadoras do movimento [autodenominado] hackfeminista e analisam a ética dos cuidados de si proposta por esse movimento que vem de coletivos feministas que pretendem o “hackeamento dos aspectos androcêntricos das relações sociotécnicas contemporâneas” (p. 3) e desenvolvem ações com perspectivas feministas interseccionais visando a difusão de práticas de “cuidados de si e das outras” (p. 3) para não apenas se prevenirem, mas agirem contra os ataques misóginos.

Nem todas as práticas do ativismo feminista digital são publicadas ou publicizadas nas redes sociais e na internet, mas visam sempre provocar “deslocamentos semiótico-materiais” (p. 3-4) que ampliem a segurança, privacidade, representação, participação, mobilização política e conhecimento das mulheres sobre e através dos ambientes online.

A publicação no perfil da comunidade Viejas Verdes, no Twitter, a despeito de não termos conhecimento de seu engajamento específico no movimento hackfeminista colombiano, exemplifica como o ativismo nas redes sociais e internet promove o aludido deslocamento semiótico-material ao substancializar uma tecnopolítica engajada na visibilização e participação feminista na política e nas lutas pela democracia em tempos de autoritarismos explícitos por parte de governos e seus agentes.

Embora Natansohn e Reis afirmem não haver, ainda, uma expressiva produção acadêmica, no Brasil, acerca do hackerismo, e, tampouco, dos elementos definidores do que se poderia chamar de cultura hacker, há indícios de que se reproduza nos grupos hackers, no Brasil e fora dele, a mesma hegemonia do modelo corporativo tecnológico no qual a tradição tecnológica se inscreveu, ou seja, androcêntrico, masculinizado e que, justamente, por privilegiar o aspecto do anonimato individual, invisibiliza a sub-representação das mulheres e demais grupos dissidentes [pessoas trans e não binárias]. “Isto nos faz lembrar uma máxima harawayana: “a autoinvisibilidade de alguns se mantém sempre graças a invisibilidade pública de outros” (HARAWAY, 2004 apud NATANSOHN e REIS 2020, p. 16)

A cultura hackfeminista não é tributária de valores que as autoras identificaram como “tradicionalmente caros à cultura hacker tais como liberdade de expressão, autonomia, meritocracia e abertura” (p. 17), intrinsecamente relacionados aos ideais do faça você mesmo, de prestígio, inovação e diversão, mas – diversamente – relaciona-se à experiência das mulheres nas práticas de um regime de cuidados e de afetos.

Que fique claro, não se trata de essencializar no gênero feminino aquilo que historicamente lhe foi reservado: a economia de cuidados baseada em aspectos reprodutivos e não produtivos! Mas, novamente recorrendo às máximas harawayanas, propor uma dimensão normativa, e por isso ética, calcada em um regime de responsabilidades que interroga – ao mesmo tempo que reivindica – nosso estar e agir no mundo, conversando com o mundo, o cuidado aos grupos historicamente explorados e invisibilizados.

Enquanto o cuidado sempre foi considerado reprodutivo e não produtivo, cabe pensar que estas formas produtivas e proativas de cuidados digitais, promovidas pelas hackfeministas, tiram o cuidado do âmbito doméstico e o desloca para as práticas tecnológicas que hoje em dia perpassam todos os âmbitos relacionais, não podendo mais ser caracterizadas como exclusivas da esfera privada e, menos, meramente reprodutivas. (p. 21)

A ética dos cuidados de si e do cuidado mútuo não é expressão da individualidade (self), mas da experiência do oprimido que reflete, na sororidade, uma economia de afetos, atenta às vulnerabilidades, porque nelas se constitui.

(…) O ativismo das mulheres é, atualmente, uma força fundamental para a transformação social na América Latina e uma inspiração para as feministas e outros movimentos ao redor do mundo. Ao desafiar as forças produtivas do capitalismo, do patriarcado e da destruição ecológica, as mulheres estão construindo novas formas de existência que rejeitam a lógica do mercado e recentralizam as políticas de reprodução do cotidiano, canalizando o poder das relações afetivas – que tradicionalmente caracterizam a esfera doméstica – para a elaboração da solidariedade social. (FEDERICI, 2009, p. 388).

Tecnopolíticas de gênero

A noite não adormecerá
Jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

As infraestruturas tecnológicas feministas constituem-se, grosso modo, na apropriação e operação de infraestruturas e redes de comunicação pelas militâncias feministas. Significam, portanto, um chamamento para o rompimento tanto da invisibilidade das próprias estruturas, porque nem sempre está claro que o acesso à internet e outras redes de comunicação depende de infraestruturas e recursos físicos que são, normalmente, concentrados; quanto o rompimento da invisibilidade dos corpos subalternizados, assujeitados e/ou reprimidos.

Descolonizar as infraestruturas significa a “descolonização do imaginário” (OLIVEIRA; ARAUJO; KANASHIRO, 2020, p. 16) e a ressignificação da ideia de autonomia [tão consolidada no léxico neoliberal] para a noção de “autonomia coletiva” (p. 16), isto é, transcender a divisão entre humano e máquina ao propor outras narrativas que se concentram em como corpos e máquinas articulam[se] em redes de poder, informação e comunicação.

A autonomia coletiva opera em regime de corresponsabilidade na qual os agentes fazem circular suas experiências e experimentações em busca de “novos possíveis” (p. 17) e está fundamentada na autodeterminação dos coletivos e comunidades nos quais se estabelece. “Há aqui uma aposta na potência de ações que conectem diferentes agendas políticas e que ativem a construção de conhecimentos e tecnologias a partir de outros lugares, incluindo aqueles marginalizados” (p. 18, adaptado).

As tecnoestruturas feministas são, portanto, uma das formas de expressão das tecnopolíticas de gênero e são da ordem dos saberes localizados, daqueles que – através de práticas de cuidado mútuo – buscam desconstruir estruturas hierarquizadas, universalizações que “atravessam lugares de fala como a branquitude e a cis-heteronormatividade” (p. 23) que determinam quem-pode-habitar-circular-falar-e-existir-onde.

A jovem Alison Ugus pereceu diante da brutalidade dessas estruturas de poder e, interceptada, lutou; imobilizada, gritou; desesperada [ou desesperançada], denunciou. Assim como ela, outras [outros] sucumbiram e, infelizmente, ainda sucumbirão em uma Colômbia que arde [e na América]. São vítimas de uma racionalidade hegemônica de poder-destruição-invisibilidade-sujeição-violência, mas a denúncia de Alison Ugus ecoou [e ecoa] nas redes de nossa resistência.

Alison Ugus, presente!

Referências

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. In: Feminismos Plurais, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KFncigGbDeE&list=TLPQMjQwNDIwMjFJMk843RauYQ&index=1. Acesso em 25 abr. 2021.

ARAUJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. In: DEL PRIORE, Mary (org.). 10 ed. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2018, p. 45-77.

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras/Companhia de Bolso, 2009.

EVARISTO, Conceição. A noite não adormece nos olhos das mulheres (1996). In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (orgs.). Histórias das Mulheres, Histórias Feministas: Antologia. v. 2. São Paulo: MASP, 2019.

FEDERICI, Silvia. Lutando para mudar o mundo: mulheres, reprodução e resistência na América Latina (2017). In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (orgs.). Histórias das Mulheres, Histórias Feministas: Antologia. v. 2. São Paulo: MASP, 2019.

IGNACIO, Julia. O que é interseccionalidade? Conceitos, Politize!, 20 nov. 2020. Disponível em: <https://www.politize.com.br/interseccionalidade-o-que-e/>. Acesso em: 25 abr. 2021.

NATANSOHN, Graciela; REIS, Josemira. Digitalizando o cuidado: mulheres e novas codificações para a ética hacker. Cad. Pagu, Campinas, n. 59, 2020. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332020000200214&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 20 maio 2021.

OLIVEIRA, Débora Prado de; ARAUJO, Daniela Camila de; KANASHIRO, Marta Mourão. Tecnologias, infraestruturas e redes feministas: potências no processo de ruptura com o legado colonial e androcêntrico. Cad. Pagu, Campinas, n. 59, 2020. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332020000200212&lng=pt&nrm=iso>. Acessos em 21 maio 2021.

RAGO, Margareth. Trabalho feminino e sexualidade. In: DEL PRIORE, Mary (org.). 10 ed. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2018, p. 578-606.

Sobre Alison Ugus e a Greve Nacional [#ParoNacional]

Facebook

Alison Ugus. Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/alisonsalazar120>. Acesso em 22 maio 2021.

Alison Ugus. Página de fãs. Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/alisonUgus/>. Acesso em 22 maio 2021. [1.216 seguidores em 22/05/2021]

Colectivo Juvenil Oriente de Caldas. Facebook. Disponível em: <https://www.facebook.com/colectivo.oc/posts/111937904405360>. Acesso em 22 maio 2021. [415 seguidores em 22/05/2021]

Distúrbios Popayán. Juano Radio. 12/05/2021, 22h57m (transmissão ao vivo). Disponível em: <https://www.facebook.com/108836097201659/videos/316325199935079>. Acesso em 22 maio 2021. [7.486 seguidores em 22/05/2021]

Internet

Paro Nacional: menor de edad se habría quitado la vida tras denunciar violencia sexual por parte de policías. Casa de la mujer. 14/05/2021. Disponível em: <https://www.casmujer.com/index.php/2021/05/14/paro-nacional-menor-de-edad-se-habria-quitado-la-vida-tras-denunciar-violencia-sexual-por-parte-de-policias/>. Acesso em 22 maio 2021.

Adolescente se suicidó tras denunciar que fue abusada sexualmente por la Policía. Diário del Norte. 14/05/2021. Disponível em: <https://www.diariodelnorte.net/noticias/generales/nacion/adolescente-se-suicid2o-tras-denunciar-que-fue-abusada-sexualmente-por-la-policia/>. Acesso em 22 maio 2021.

Colectivos feministas convocan varias protestas en rechazo a la violencia sexual durante el paro nacional en Colombia. Notimérica. 14/05/2021. Disponível em: <https://www.notimerica.com/politica/noticia-colectivos-feministas-convocan-varias-protestas-rechazo-violencia-sexual-paro-nacional-colombia-20210514142925.html>. Acesso em 22 maio 2021.

VALEGAS, Laura Tatiana Peláez. Qué proponen los colectivos feministas en el Paro Nacional en Colombia. Nodal: Notícias del America Latina y el Caribe. 23/05/2021. Disponível em: <https://www.nodal.am/2021/05/que-proponen-los-colectivos-feministas-en-el-paro-nacional-en-colombia/>. Acesso em 23 maio 2021.

Instagram

Colombia: abuso sexual y Esmad. Revista Y Editorial Sudestada [@sudestadarevista]. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CPBFKQoBdow/?utm_medium=copy_link>. Acesso em 22 maio 2021.

Twitter

Así detenía ayer el ESMAD a una joven en Popayán. Wilson Aria (senador). Twitter. Disponível em: <https://twitter.com/wilsonariasc/status/1393038100117528578?s=20>. Acesso em 22 maio 2021. [128.800 seguidores em 22/05/2021]

Youtube

Alison Ugus se suicidó el 12 de mayo 2021 después de ser violada por grupo de la policía popayan. Youtube. 14/05/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xxjP1CBe9vo>. Acesso em 22 maio 2021. [3.826 visualizações em 22/05/2021]

Distorsionan la verdad: Lo que pasó com Allison Meléndez. La Máscara Blanca. 14/05/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6SsviB7rccs>. Acesso em 22 maio 2021. [14.941 visualizações em 22/05/2021]

Incendian URI de Popayán donde fue conducide joven detenida. Youtube. 15/05/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rsIqGsPTK_4>. Acesso em 22 maio 2021. [111.317 visualizações em 22/05/2021]

Separan del cargo a policías involucrados em presunto abuso a menor em Popayán. Youtube. 15/05/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=41d7U4JahVw>. Acesso em 22 maio 2021. [14.563 visualizações em 22/05/2021]

i A noite não adormece nos olhos das mulheres. Poema de Conceição Evaristo, em memória de Beatriz Nascimento, publicado originalmente em BARBOSA, Marcio; CONCEIÇÃO, Sonia Fatima; e RIBEIRO, Esmeralda (orgs.). Cadernos negros, v. 19. São Paulo: Quilombhoje; Ed. Anita, 1996.

ii Algumas notícias informam Allison Melendéz (com dois eles em Allison). O endereço da jovem, no Facebook, é descrito como Alison Salazar.

iii A ação se inicia com quatro policiais, mas tem apoio de um outro em uma motocicleta que tenta bloquear e afastar o jornalista. Ao longo da captura outros policiais se revezam na tarefa de imobilizar a jovem que, aos gritos, resiste.

iv O vídeo, de 41m55s, está publicado em Juano Radio Sistema Informativo, disponível em: <https://www.facebook.com/watch/juanoradioo/>. Ultimo acesso em 22 maio 2021.

v Utilizaremos, conforme os usos correntes, página para a rede social Facebook, perfil para as redes sociais Twitter e Instagram e canal para a rede social YouTube.

vi As fontes consultadas se referem a captura ou apreensão de Alison Ugus como “detenção”.

vii Um neologismo das redes sociais que refere à ação de reproduzir, republicar, retuitar retweetar a postagem (mensagem de texto, imagem, vídeo etc.) de outra pessoa.

viii Segundo Margareth Rago, “Já em 1901, um dos primeiros levantamentos sobre a situação da indústria no estado de São Paulo constata que as mulheres representavam cerca de 49,95% do operariado têxtil, enquanto as crianças respondiam por 22,79%. Em outras palavras, 72,74% dos trabalhadores têxteis eram mulheres e crianças” (RAGO, 2018, p. 561).