Em setembro dei uma entrevista para a Revista FAPESP, falando sobre ciência cidadã e aberta, relatando nossa experiência com o projeto Ciência Aberta Ubatuba. O Antonio Lafuente também foi entrevistado, mas preferiu enviar suas respostas por escrito para o jornalista (Bruno de Pierro). Na reportagem apenas uma pequena parte do que falamos (como é habitual) entra no texto final. Mas o Antonio acabou disponibilizando na internet o texto que escreveu para a entrevista. Numa das respostas achei uma definição interessante, dada sua amplitude e clareza, para a noção de laboratório cidadão. Transcrevi e traduzi abaixo este trecho:
—
Revista FAPESP: O que são os Laboratórios Cidadãos? Há algum exemplo notório dessa iniciativa no mundo?
Antonio Lafuente: Um laboratório cidadão é um espaço de produção aberta do conhecimento.
É um lugar capaz de acolher um coletivo heterogêneo de atores que almejam dar forma a um entorno social. É portanto um lugar onde nos obrigamos a identificar uma problemática, documentá-la, isolar suas características mais notáveis, contrastar os distintos pontos de vista, explorar as diferentes formas de abordagem, extrair conclusões e comunicar as descobertas, dúvidas e fracassos. Aqueles que a integram se autoconfiguram como uma comunidade de aprendizagem aberta a toda variedade de atores e a toda pluralidade de pontos de vista. De forma que sua primeira tarefa é encontrar uma linguagem comum, ou seja, um espaço que torne possível a conversação sem que ninguém imponha seu ponto de vista e sem que ninguém tenha o poder de fechar/bloquear um tema porque considera que já se discutiu o suficiente.
Um laboratório cidadão é, portanto, um espaço para aprender a viver juntos: uma incubadora de comunidades. Um laboratório cidadão é um espaço, por antonomásia, para a política experimental, pois sendo hospitaleiro com as minorias e tratando-as como sensores de aviso antecipado de problemas porvir, estaríamos encontrando respostas situadas e inclusivas para assuntos todavia incipientes e talvez mais frequentes, gerais ou agudos no futuro.
É um laboratório porque aposta na cultura experimental, no contraste de pontos de vista, nas práticas abertas e na comunicação pública. É cidadão porque confia na inteligência coletiva e outorga maior dignidade cognitiva ao experiencial, o que é o mesmo que dizer que um laboratório cidadão nunca dividirá o mundo entre os que sabem e os que não sabem.
As práticas do laboratório cidadão são realizadas entre todos e, consequentemente, dá-se forma a bens comuns. Eu gosto de especular a ideia de que sempre que há um bem comum é necessário que haja um laboratório que o sustente e que é sustentado por ele. Como o procomúm poderia sobreviver a impérios, autoritarismos, neoliberalismos e a circunstâncias tão hostis não fosse pela comunidade que o sustenta (e que é sustentada por este comum), que nos dão provas constantes de saber adaptar-se e de interpretar corretamente os signos externos?
Criar e sustentar um bem comum demanda muito conhecimento, muita capacidade de análise ou, em outras palavas, um laboratório cidadão plenamente operativo. Mas vejam, plenamente operativo não quer dizer que necessite de um edifício, um chefe, um regramento estrito ou uma maquinaria sofisticada. Não é nem necessário, como é o ordinário, saber que é um laboratório cidadão. O que importa é que se dê uma pequena infraestrutura capaz de dar forma a sua vontade de querer (sobre)viver, que o ajude a converter o protesto em propostas, o experiencial em conhecimento contrastado e as pequenas infraestruturas em garantidoras do seu direito à diferença.
Há exemplos? Muitos e em todas as partes. Diga-me um bem comum e te mostrarei um laboratório cidadão! Mas também, vale a equação inversa: dê-me um laboratório cidadão e construirei um bem comum. Os grupos de Alcoólatras Anônimos, talvez sem sabê-lo, seriam um laboratório cidadão que estaria iluminando uma maneira distinta de nos relacionarmos com o corpo, uma corpo tal que conversa com termos distintos, que evoca diferentes experiências: um corpo comum. Em Madrid, como em muitas outras cidades do mundo abundam as hortas urbanas, muitas vezes nascidas em espaços ocupados e mais tarde legalizados. O que está acontecendo, o que significa isso? Para mim, são laboratórios cidadãos onde se está experimentando outras formas de habitar a cidade, distintos modos de nos conectarmos que não estejam mediados (o determinados) pelo consumo, pelo valor ou pela utilidade. Estamos, entre todos, dando forma à ideia de que uma cidade são suas relações e não suas construções. Estamos reinventando a cidade como um espaço comum. Temos dado diferentes nomes a esses movimentos e mobilizações, como urbanismo-beta, urbanismo-feito-a-mão, urbanismo-faça-você-mesmo. Todos têm em comum a vontade de fazer coisas juntos, de disputar com os urbanistas sua hegemonia sobre a urbe e, enfim, de mostrar que outro mundo é possível: será vulnerável, será transitório, será esporádico,….mas será de todos e de ninguém ao mesmo tempo. Sua fragilidade é o que tem de amoroso, como também sua transitoriedade, este não estar quieto, ou seu querer devir outra coisa, é o que o a faz habitável. Sua natureza intermitente ou efêmera também pode ser vivida como uma proteção face às formas identitárias de nos agruparmos, sempre tão atrativas ao princípio como coercitivas para aqueles que querem discordar ou ser diferentes.