Na primeira semana de agosto reiniciaremos o curso interrompido em março pela Pandemia Covid-19. Ela não passou e ainda estamos num momento de grande propagação do vírus e com elevado número diário de mortos. A retomada das aulas à distancia (ADE, EAD…pouco importa) está cercada de controvérsias. Antes dessa decisão institucional eu desejava outro coisa para este momento. Queria que pudéssemos criar voluntariamente ações coletivas de investigação sobre a relação Universidade, Ciência e Pandemia: como chegamos ate aqui, e que universidade precisamos inventar pra transformar essa situação? Queria também que pudéssemos nos dedicar mais às ações de apoio mútuo entre professores, estudantes e funcionários. Quem sabe o curso agora possa servir também pra tramar um pouco dessas duas linhas.
Nos deparamos com o desafio de realizar um novo curso em condições excepcionais. Há diversos problemas envolvidos na realização das atividades educacionais não presenciais mediadas por tecnologias digitais e cibernéticas. De imediato, o mais agudo deles são os efeitos de intensificação das desigualdades. Esse e outros problemas serão objetos de nossa reflexão no percurso da disciplina do semestre Sociologia da Educação.
Mas há também aspectos interessantes que podem emergir dessa experiência. É hora de falar um pouco disso; é hora de reconhecer a potência da situação e lutar para “retraçar o destino trágico que nos querem impor” – linda imagem, inspirada no Odu, utilizada pelo colega Uirá Garcia numa conversa com os estudantes durante a pandemia.
As sensações que nos atravessam durante a pandemia e os diferentes momentos que ja vivemos em mais de quatro meses, nos arrastam a modos de ser desconhecidos. Nos últimos dias comecei a imaginar, para atravessar esse momento, uma nova composição com plantas subterrâneas, tubérculos ou rizomas: devir-gengibre, devir-mandioca, devir-batata, devir-cebola. Entrar um pouco para baixo da terra, acumular energia, ficar imperceptível, crescer para os lados, fazer novas alianças, ficar amigo de fungos, bactérias, minerais e outros seres vivos, criar composições que amplifiquem uma nova reticulação, infiltrar e correr como a água, curar algumas feridas, revigorar, fazer novos parentes, ampliar a própria força para o que está por vir, rachar o solo por baixo.
Reorganizei o curso levando em conta algumas disposições, especialmente reconhecendo a diversidade das situações de vida dxs estudantes (e também a minha) no contexto da Pandemia. Não está fácil pra ninguém, e pra muitas e muitos estudantes, a vida está por um fio. Por isso, o desenho do curso, as exigências e as expectativas serão outras. Mais do que resultados ao final do trajeto queremos uma boa travessia: o meio importa! Gosto de pensar o curso como a prática de uma mesopolítica, uma política do meio.
Na linha do que temos experimentado no Pimentalab (nos projetos Laboratório do Comum e Zona de Contágio) o curso pode funcionar como um laboratório de investigação coletiva e situada em que seja possível constituir uma Comunidade Transitória de Práticas, um coletivo de aprendizagens. Por “coletivo de aprendizagem” refiro-me aqui à idéia forte de que ninguém aprende sozinho, aprendemos juntxs e neste processo transformamo-nos todxs (Freire, B.Hooks, Lafuente, dentre outrxs servem aqui de inspiração). Diferente, portanto, das “pedagogias de aprendizagem” vinculadas atualmente aos modos de subjetivação neoliberal (um eu-individual-soberano que aprende através da aquisição de habilidades e competências, num infinito empresariamento de si). A idéia de “transitória” tomo de empréstimo do Ailton Krenak, quando ele convida as pessoas numa atividade a constituirem uma “comunidade transitória” dedicada ao aqui-agora da escuta e aprendizado mútuo.
Como fio condutor do curso “Sociologia da Educação” teremos uma seleção de problemas que emergiram para o campo da educação diante da Pandemia Covid-19, elegendo recortes estruturantes deste vasto campo de estudos. O curso deve servir também pra nos ajudar a elaborar melhores perguntas.
Para a arquitetura deste curso à distância, concebemos que as atividades deveriam levar em conta a possibilidade de trabalharmos tanto com diferentes graus de engajamento dos estudantes, mas também com diferentes graus de abertura para públicos externos à sala de aula habitual. Um vantagem de um curso remoto é a chance de colocarmos na conversa pessoas e perspectivas distintas que normalmente não teriam condições de estar em nossas salas de aula. Assim, algumas atividades do curso terão um desenho mais fechado (voltado ao trabalho interno) e outras terão um desenho mais aberto (voltadas ao envolvimento com públicos distintos).
Leituras: o conteúdo sofreu alterações de forma a criar maior aproximação com temáticas que eclodiram no contexto da Pandemia (escola-educação, universidade, trabalho docente e tecnologias educacionais entre outras). O volume de leitura também foi modificado. A partir da idéia de um núcleo Mínimo-Múltiplo-Comum (MMC) organizamos trilhas de estudos com graus diversos de complexidade de maneira que cada estudante possa escolher o caminho que lhe é possível neste momento.
Encontro sincronicos: a idéia é que possamos experimentar e tentar inventar “estados de presença”. O que pode ser um encontro numa sala virtual? O que pode ser uma aula? Quais os modos de presença que desejamos praticar? O problema não é novo e ele tambem se coloca para uma aula presencial. Nos habituamos a não questionar a qualidade de nossas aulas e a “crise de presença” contemporânea (dxs professorxs e dxs estudantes), como se estar em sala fosse o suficiente para provocar um acontecimento-aula-encontro. Numa aula muitas coisas acontecem e ela também comporta diferentes estados de presença. Não é suficiente transferir nossas práticas da sala de aula para os ambientes virtuais. Assumir a experimentação talvez seja a melhor alternativa nesse momento. No ambiente digital estamos sujeitos a um outro regime de sensibilidade (percepção-sensação); a outros ritmos; a uma outra política da atenção. O meio importa!
Dividi as atividades sincronicas em dois momentos distintos que serão alternados a cada semana. Teremos mini-blocos temáticos de 15 dias. Numa semana faremos um encontro na forma de um grupo de estudos e orientação, conversaremos sobre os textos, elaboraremos perguntas, discutiremos, e vamos pensar sobre os projetos da disciplina. Essa atividade está mais voltada para o trabalho interno. Noutra semana faremos uma espécie de “aulão”. Haverá um momento expositivo inicial (penso em realizar uma fala de aproximadamente 20-30 minutos), poderemos ter diferentes convidadas/os para essa conversa e também público espontâneo. Em seguida, abriremos para interação entre todxs. Tempo máximo de duas horas para toda a atividade. Minha expectativa é que neste encontro possamos partir do pensamento dxs autorxs dos textos, para dialogar com os materiais que serão coletados e produzidos pelxs estudantes, e também com as experiências que serão narradas entre nós. Temos que “aproveitar” o fato de que nosso curso tem como objeto/tema a própria educação. Do ponto de vista tecnológico resolveremos assim: nas atividades internas utilizaremos ferramentas e ambientes de acesso restrito; nos encontros-aulão utilizaremos plataformas de acesso público e streaming.
Atividades assincrônicas: alem da leitura dos textos esperamos que os estudantes possam produzir (individualmente ou coletivamente) um exercício de pesquisa sobre temas/problemas relacionados à disciplina. Vamos coletar e organizar links para pesquisas, relatorios, reportagens, dados; e vamos criar ensaios em diferentes linguagens. Além da página na wikiversity (onde vou documentar o percurso da disciplina), vou utilizar um site em wordpress para hospedar os demais produções da disciplina. A cada quinzena os estudante serão convidados a produzir algo e publicar na forma de um comentário no site: um pequeno texto, audios, fotos, poesias, microvideos relativos ao tema da quinzena. Fizemos isso na Zona de Contágio e foi uma boa experiência. Aqui um exemplo (vejam os comentários ao post).
Como forma de avaliação temos duas opções e cada estudante poderá optar por um caminho: coletânea de suas produções publicadas no site durante o semestre; ou a elaboração de um ensaio único ao final do semestre.
Por fim, outro elemento importante para que o curso possa melhor fluir é a enfase nos processos coletivos. Como podemos misturar a constituição de grupos de pesquisa entre os estudantes, com as formas dos grupos de afinidade e grupos de apoio-mútuo? Um curso à distância é cheio de armadilhas (assim como um curso presencial). Frequentemente,nos ambientes digitais, graças à tecnicidade do meio (sua tecnoestética e tecnopolítica), há uma maior disposição para a individualização dos processos de aprendizagem. Teremos que praticar uma atenção e escuta ativa aos processos que vamos desencadear para que consigamos promover outros desenhos e disposições para o fortalecimento coletivo. Como transformar a tela em uma interface mais conjuntiva do que conectiva? “Como redesenhar a pesquisa, o ensino universitário para uma lógica da conjunção? Que arranjos acadêmicos, investigativos, pedagógicos e de convívio poderiam ativar uma fratura que permita “pular os muros” da lógica proprietária do conhecimento, mas cair longe deles? Como manter, por algo despertado na quarentena, nossa capacidade de decifrar os signos segundo o desejo, liberando espaço para a vibração do desejo-pesquisa, desejo-educação, desejo-arte, desejo-luta?”